terça-feira, 12 de julho de 2011

O Passeio Socrático

Há muito tempo atrás, li esse texto, escrito por Frei Betto, que ao visitar a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse.
O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos.
O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável.
Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens". Portanto, em si o homem não tem valor para nós. O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão.
Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas têm alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígine cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia? Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife: não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela.
Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder, pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos e se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.
Não importa que a pessoa seja imbecil, revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc.
Vou com freqüência a livrarias de shoppings, ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo, também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas e, assediado por vendedores como vocês, respondia:
"Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".

E após tanto tempo, esse texto continua, cada dia mais, fazendo mais e mais sentido...

2 comentários:

  1. Ou melhor; Quantas coisas preciso para ser Feliz????????????

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  2. To aprendendo a fazer o mesmo tipo de passeio e de reflexão, pq a unica coisa que eu gostaria de ter de volta, eu nao posso ter!

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